Irene, de Pierre Lemaitre

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Por Josué de Oliveira – Em romances policiais, não é raro que doses elevadas de violência acabem funcionando como mero espetáculo. Desde as narrativas clássicas da Era de Ouro, em que homicídios ocorriam basicamente para que um cadáver estivesse disponível, chegando aos thrillers atuais, onde serial killers matam como se não houvesse amanhã, devemos admitir que o gênero tem uma certa inclinação a fazer pouco caso de seus mortos – que não são poucos.

Houve e há, naturalmente, autores que tratam da violência e de suas consequências com mais ponderação, dando o peso necessário àquilo que representa: um choque, uma quebra na ordem das coisas, um convite a desviar os olhos. Raymond Chandler já apontava para o crime como algo pervasivo e infiltrado em todas as áreas da sociedade; Dennis Lehane fez questão que cada morte ocorrida perto dos detetives Patrick e Angela os marcasse e levasse junto algo deles próprios; Stieg Larsson deu muita atenção aos crimes contra a mulher na sociedade sueca. Estes e muitos outros, cada um a sua maneira, não se limitaram ao esquema detetive-criminoso-solução e conseguiram, por meio de histórias que também funcionam como entretenimento, dizer algo mais sobre essa atividade tipicamente humana que é matar..

 

Analisado sob esse viés, Irene (Universo dos Livros), do premiado francês Pierre Leimaitre, ganha contornos interessantes e gera boas discussões em meio a tantos policiais burocráticos e repetitivos que lotam as prateleiras das livrarias.

 

Trata-se do primeiro livro da trilogia protagonizada por Camille Verhoeven, comandante da Brigada Criminal de Paris. Medindo não mais que um metro e quarenta e cinco – decorrência de uma hipotrofia fetal – e casado com Irene, grávida do primeiro filho do casal, o policial tem uma vida relativamente pacata pontuada pelas eventuais incursões ao lado escuro da natureza humana que o trabalho lhe proporciona.

A mais nova delas ocorre quando uma chamada anônima leva o comandante e sua equipe a um apartamento em Conervoie, onde os cadáveres de duas mulheres são encontrados num espetáculo de horror. Uma estranha digital encontrada na cena relaciona esse crime a outro, ocorrido dois anos antes, com requintes semelhantes de crueldade. O que Camille vem a descobrir é aterrador: está enfrentando um assassino em série que replica mortes narradas em romances policiais famosos, como Dália Negra, de James Ellroy, razão pela qual receba da imprensa sensacionalista o apelido de Romancista. Inicia-se, então, um duelo direto entre policial e o assassino.

Com capítulos curtos e valorizando muito os diálogos, Irene é, a primeira vista, um procedural como tantos outros. Esse é o aspecto mais tradicional do livro de Lemaitre: o thriller em si, a caçada pelo criminoso, o jogo de gato e rato que já conhecemos de outras visitas a obras do gênero. O autor gerencia esses elementos de forma competente: não faltam os perfis psicológicos, as análises forenses, as buscas em bancos de dados internacionais. Tudo está lá, com certo exagero em alguns momentos, como uma âncora que finca o romance no gênero ao qual pertence.

A notícia animadora é que isso tudo, mesmo que remetendo a uma infinidade de outros livros, está a serviço de uma boa história. A trama construída por Lemaitre fisga o leitor de romances policiais por estabelecer explicitamente um diálogo com outros romances policiais. Assim, é impossível não prestar o dobro de atenção para tentar captar referências a livros do gênero e, assim, antecipar descobertas acerca do Romancista que os policiais ainda não tenham feito.

Lemaitre também acerta em cheio nos personagens, a começar por Camille, cujo ponto de vista é o que acompanhamos mais de perto. Chamando atenção tanto pela baixa estatura quanto pela competência, o comandante pertence àquela raça de policiais que se envolve pessoalmente em suas investigações, o que gera consequências negativas na vida pessoal, especialmente no casamento. Fragmentos de seu passado, sobretudo no que diz respeito ao pano de fundo familiar, são revelados desde as primeiras páginas do livro: a mãe de Camille – cujo vício em cigarros ocasionou a má-formação do filho – e seu ateliê de pintura, o pai com quem cultivou uma relação distante, o caminho até a polícia. Tudo isso contribui para torná-lo mais humano ao leitor, o que é essencial para os desdobramentos da trama.

O tratamento dado aos personagens secundários também é atencioso: a equipe de Camille – o culto Louis, o libertino Maleval e o pão-duro Armand –, o chefe Le Guen, a galeria de suspeitos dos assassinatos, todos apresentam alguma peculiaridade que os torna singulares. A exceção é Irene, esposa do protagonista. A mulher surge aqui muito mais como parte da construção de Camille do que um ser dotado de vida própria, o que é uma pena. Vale observar que as personagens femininas, no geral, além de em número estarrecedoramente pequeno em relação aos masculinos, são pouquíssimo exploradas pelo autor.

O romance segue uma estrutura linear e se apoia no clima de corrida contra o tempo, o que confere tensão e suspense à narrativa. A história avança num crescendo e as últimas cem páginas são uma verdadeira aula de como fazer thrillers, ainda que com alguns excessos para salientar o tom de urgência. A prosa elegante de Lemaitre, que se sobressai em momentos mais descritivos e nas reminiscências de Camille, garante a fluidez do texto, cujas 400 páginas voam sem que se perceba.

E são encerradas com um final angustiante e extremamente incomum em thrillers de serial killer, mostrando que o compromisso de Lemaitre com as convenções do gênero só vai até certo ponto. O terreno é preparado pela ótima reviravolta inserida ainda no fim da primeira parte; a chocante cena final ecoa na cabeça muito tempo depois do término do livro, e não é para quem tem estômago fraco.

O choque provocado por esse desfecho remete à discussão inicial sobre violência e morte na literatura policial. De um lado, temos um psicopata que vê nela uma forma de arte que fala dos desejos escondidos dos leitores. De outro… estamos nós. Os leitores. O jogo de referências, tão importante para que o livro funcione, e as motivações do Romancista explicitam a banalização da violência – sobretudo contra a mulher – na qual romances policiais constantemente se apoiam. Um ponto não apenas válido, mas importante de ser abordado.

E talvez Irene se saísse ainda melhor se tivesse de fato investido nessa reflexão… mas isso infelizmente não ocorre. Lemaitre parece satisfeito apenas em apontar para a questão, mas termina não problematizando-a. Olhada como um todo – e tendo em vista sobretudo o desfecho, tão eficiente se restringirmos a análise a termos meramente narrativos –, o que se tem é uma história que mais reitera e legitima a banalização da violência na ficção policial do que de fato a questiona. Ao menos nesse ponto, Irene falha onde poderia se mostrar impecável.

Mesmo com essa reserva, o livro merece muito ser conferido. Espero que tenhamos os dois próximos volumes da trilogia lançados por aqui.

 

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Título: Irene
Autor: Pierre Lemaitre
Páginas: 400
Editora: Universo dos Livros (2015)
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SINOPSE – Para o comandante Camille Verhoeven, a vida não poderia estar melhor: ele tem um casamento feliz e está esperando o primeiro filho com a amável Irene. Mas sua rotina agradável é interrompida por um assassinato cuja brutalidade choca toda a Brigada Criminal. O caso se torna ainda mais sombrio quando são encontradas similaridades entre o crime e o assassinato hediondo relatado em Dália Negra, um romance policial de James Ellroy, publicado em 1987.

 

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