Paisagem de Outono, de Leonardo Padura

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Por Rogério Christofoletti – Você pode até não concordar, mas o outono é a estação mais triste do ano. As folhas caem, as árvores ficam esqueléticas e o vento insiste em arrastar nossos pensamentos para longe. O cenário é melancólico e a vida parece simplesmente ser sugada pela terra. Claro, é passageiro, afinal se trata de um período do ano, transitório e relativo. Leonardo Padura sabe disso e não foi à toa que planejou concluir sua tetralogia em “Paisagem de Outono” nessa época do ano. Era necessário conduzir seu personagem mais famoso a um ponto em que não fosse mais possível voltar, uma espécie de ápice, de ponto de mutação definitivo. O tenente investigador Mario Conde chega onde sempre quis, mas isso não é necessariamente uma boa notícia.

Lançado pela Boitempo, o livro era inédito até então no Brasil, e lá se vão vinte anos desde que surgiu nas livrarias cubanas. Antes dele, vieram “Passado Perfeito”, Ventos de Quaresma e “Máscaras”. Juntos, os quatro volumes compõem a série “Estações Havana” e pela primeira vez desembarcam em nossas prateleiras apresentando o ciclo completo do melancólico detetive que desfila pelas desgastadas ruas da capital cubana.

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Se você é daqueles que lê livros sequenciais respeitando a ordem, sabe que Conde estreia na literatura em plena ressaca, com a cabeça latejando de rum e o coração arrebatado de amor. Três livros depois, amadurecido e desesperançoso, nosso herói surge em “Paisagem de Outono” em cima de uma laje, sem camisa, transtornado, gritando para os céus. Sim, está novamente encharcado de rum, e sua ira tem nome e endereço: Félix, o furacão que está nas vizinhanças prestes a destruir seu bairro. Mas não só: na iminência de completar 36 anos, Mario Conde acaba de pedir baixa da polícia num daqueles gestos constantemente sonhados mas sempre adiados. Quer morar na praia e escrever livros, quem sabe uma história sórdida e comovente sobre o amor que os homens têm entre si?

 

O leitor tem nas mãos um romance policial, e uma artimanha vai colocar o policial demissionário de novo nas ruas, pronto para solucionar um último caso.

 

Um importante burocrata cubano dos anos 70 e que havia deserdado aparece morto de forma muitíssimo suspeita. Responsável por obras de arte que o governo confiscava dos endinheirados, Miguel Forcade boia numa das praias de Havana, aparentemente morto por golpes na cabeça e sem os genitais! Por que mataram aquele homem? Por que voltou ao país? Como enganou as autoridades locais? Terá sido vingança?

Mario Conde irá nos contar, não sem antes provar os deliciosos manjares de Josefina, protagonizar porres homéricos com seus amigos de sempre, pensar sobre a vida, seus amores e mistérios, e nos oferecer mais uma absoluta homenagem à ilha mais corajosa do mundo. Há uma outra homenagem que merece registro: ao longo da trama, Leonardo Padura espalha elementos narrativos que remetem inevitavelmente a “O Falcão Maltês”, de Dashiel Hammett. Aliás, Padura também dedica o livro a ele, entre outras pessoas. Que o leitor fique avisado: vai tropeçar em ambição desmedida, traição, sexo, objetos de arte valiosos e homens de coração de pedra (sim, temos isso também em Hereges).

A central de polícia já não é mais a mesma, seu superior – major Rangel, o Velho – não está no comando, e é tempo de fazer escolhas de vida que foram relegadas até então. Mas os amigos de Conde são os mesmos e esse estranho amor que nos faz guardar certas pessoas – e que chamamos de amizade – é uma ideia poderosa nesta história. Para quem segue a vida do tenente, é divertido reencontrar Manolo, Magro Carlos, Andrés, Candito e Tamara, sem contar o peixe-de-briga Rufino e o cachorro Lixeira. Na companhia deles, somos convidados a refletir sobre o próprio sentido de felicidade e sobre o que resta em existências comuns como as nossas.

Muito para uma novela policial? Nem um pouco. Tudo é na medida. Até mesmo os charutos indizíveis e o contrabandeado uísque de primeira. Um dos mais importantes nomes da literatura cubana, Leonardo Padura nos oferece generosas oportunidades para revisar o caráter humano e as condições que o moldam. Félix, o furacão insinuante, é uma excelente metáfora do que teremos adiante no que chamamos de vida real. No começo de novembro de 1989, poucas semanas após os acontecimentos de “Paisagem de Outono”, teremos a queda do Muro de Berlim e nada será como antes. Nem para Conde, os cubanos, os brasileiros ou qualquer terráqueo. Fortes ventos arrastam ideias, mas também trazem notícias e arrancam nossas certezas dos cercados. Furacões deixam rastros que não se pode ignorar, e as memórias que tatuam em nossas mentes são igualmente indeléveis.

Esta edição da Boitempo tem ainda dois trunfos memoráveis: a caprichosa tradução de Ivone Benedetti (autora do ótimo Cabo de Guerra) e um texto do próprio Padura contando a gênese de seu personagem mais amado. É confessional e quase mediúnico. Uma fresta da intimidade de Conde e seu criador, nascidos no mesmo dia (!) e testemunhas/cúmplices de tantas ilusões, incertezas e temores.

Para quem ainda não foi devidamente apresentado ao tenente investigador Mario Conde, uma recomendação: leia os volumes da série “Estações Havana” na sequência para que a cena final de “Paisagem de Outono” alcance o patamar merecido. E não se surpreenda em sorrir ao mesmo tempo em que uma lágrima descer sem qualquer cerimônia.

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SOBRE O LIVRO

Título: Paisagem de Outono
Autor: Leonardo Padura
Tradução: Ivone Benedetti
Páginas: 248
Editora: Boitempo Editorial
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SINOPSE – Na iminência de um furacão que ameaça assolar Havana – e na ressaca de um outro furacão que acaba de virar de pernas para o ar a Central de Polícia em que trabalha –, o investigador Mario Conde está prestas a completar trinta e seis anos e se vê diante de uma oportunidade de reconstruir sua vida e seus sonhos. Porém, primeiro ele precisa realizar uma última e hercúlea tarefa: descobrir o assassino de Miguel Forcade, ex-funcionário do governo cubano que havia desertado para Miami nos anos setenta e subitamente reaparecera em Cuba, sem maiores explicações. Em seus tempos áureos, Forcade havia sido responsável por decidir o destino de inúmeras obras de arte confiscadas das famílias burguesas que deixaram a ilha após a Revolução. O que teria ele vindo buscar? E por que fora tão brutalmente morto, com toques sádicos de vingança? Como todas as obras de Padura, este quarto volume da série Estações Havana é uma ode de amor a Cuba e ao povo cubano, assim como à força da amizade.

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